terça-feira, 15 de março de 2011

Dermeval Saviani em entrevista à Rosina Duarte - I

Vou começar a postar uma nova entrevista e devido ao tamanho da mesma, vou postá-la em partes (I, II, III...).
Dessa vez escolhi uma entrevista cedida pelo professor Dermeval Saviani à jornalista Rosina Duarte no ano 2000. Nesse trecho da entrevista o professor critica a ideia de "cultura da repetência" tão propagada na época pelo Ministro da Educação Paulo Renato, que com essa teoria responsabilizava o professorado pelas mazelas da educação (os grifos no texto são meus).
Vale lembrar que essa ideia de que há uma "cultura da repetência" entre os professores ainda é recorrente.
Também há, nesse trecho,  uma crítica à promoção automática, relancionando-a à necessidade governamental de melhorar as estatísticas e não à qualidade de ensino.
Boa Leitura!
Mirtes


Dermeval Saviani, professor da USP e Unicamp, pesquisador do Cnpq,  buscou esclarecer, no campo da teoria educacional, as relações entre a educação e a política, além do alcance da atuação política na prática educativa e qual seria a especificidade da educação.
Considerado filósofo da educação e/ou pedagogo latu sensu, fundador de uma pedagogia dialética, que denominou Pedagogia Histórico-Crítica
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1. No último relatório do Programa das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco), o Brasil aparece como campeão em repetência escolar. Isso é um sintoma do agravamento da situação educacional Brasileira?
R. Certamente, este é um dos muitos indícios da gravidade da situação educacional brasileira, independentemente de ter havido um agravamento ou não. Com efeito, mesmo que tenha havido alguma melhora, os dados mostram que a situação é muito grave.
 
2. Existe realmente esta “cultura da repetência” que o ministro da educação Paulo Renato alega existir?
R. Não considero apropriada a expressão “cultura da repetência”. A palavra “cultura” remete à noção de “sistema de valores”, como se pode observar na definição clássica de cultura que a considera como os modos de pensar, agir e sentir de um povo. Ora, nesse contexto, cultura da repetência estaria significando que a repetência é tida como um valor positivo levando os professores a considerar que reprovar é bom, isto é, o bom professor é aquele que reprova. Admitidas as exceções de praxe, entendo que não é esse o sentimento dominante entre os professores. Afinal, há cerca de 70 anos (recorde-se o Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova lançado em 1932) vem sendo execrada a figura do professor tradicional, autoritário, aquele que estaria sempre de algum modo predisposto a lançar mão do instrumento da reprovação para se impor diante dos alunos. Nessas circunstâncias, o recurso à expressão “cultura da repetência” não passa de uma maneira de mascarar as condições precárias a que estão relegadas as escolas públicas, condições essas que impedem os professores de ensinar e os alunos de aprender, levando aos altos índices de repetência apurados pelas pesquisas. Não é, pois, por acaso que a referida expressão freqüenta, geralmente, o discurso dos governantes que têm sob seu encargo a formulação e execução da política educacional. Mascarando as razões reais da repetência com a alegada “cultura da repetência”, eles elidem, assim, a própria responsabilidade diante dessa situação. Assumindo uma diretriz política que comprime cada vez mais os investimentos em educação, o que agrava as suas condições precárias, eles tentam jogar para os professores e para a própria população a responsabilidade por esse estado de coisas.
 
3. O que significa para uma criança ou adolescente – em especial uma crianças carente, estudante da rede pública e sem estímulo cultural em casa  - a repetição de uma ou mais séries? O reflexos a repetência  na sua vida escolar, profissional e afetiva podem ser medidos ou analisados?
R. Para as crianças e adolescentes, assim como para as suas famílias, a repetência configura, objetivamente, uma situação dramática. Utilizei o advérbio “objetivamente” porque, ainda que do ponto de vista subjetivo se encontrem maneiras de conviver com essa situação racionalizando-a, por assim dizer, por meio de uma concepção traduzida em frases como “não dá para o estudo”, “não tem cabeça boa”, etc., os reflexos na situação dessas famílias são muito sérios porque lhes retira a expectativa de melhoria de vida o que significa, na prática, a cassação do seu futuro. Entretanto, para lá dos aspectos subjetivos e objetivos das famílias individualmente consideradas, os reflexos são da maior gravidade para o próprio país, tendo em vista a quantidade de talentos promissores que deixam de ser desenvolvidos. De fato, o país que não desenvolve as novas gerações, isto é, que não propicia à sua população de crianças e jovens uma formação adequada, está cassando o próprio futuro. 

4. O ministro Paulo Renato defende a promoção automática como solução para reduzir com a repetência. O senhor acha que isso é solução? Por que?
R. Definitivamente, a promoção automática não é solução para o problema da repetência. Isto porque, como se infere da própria denominação, a passagem é automática, isto é, os alunos são promovidos independentemente do que fizeram ou deixaram de fazer. Ou seja, quer se tenha atingido os objetivos quer não, tenham ou não preenchido os requisitos, a aprovação irá ocorrer. Deixa de ser relevante, assim, o desempenho tanto dos alunos como dos professores. Coisa diversa é o empenho em se atingir a meta da “repetência zero”, vale dizer, o objetivo de que todos sejam promovidos. Aqui se trata de criar as condições para que todos os alunos atinjam os objetivos definidos para os diversos componentes curriculares que integram o processo de ensino-aprendizagem. Em verdade, a defesa da promoção automática se liga mais ao objetivo de melhorar as estatísticas dos serviços educacionais do que ao objetivo de garantir a qualidade do ensino. Com efeito, tenho observado que os atuais responsáveis pela política educacional parecem mais preocupados em melhorar as estatísticas educacionais do que em melhorar a qualidade das escolas. Assim, se se adotasse imediatamente a promoção automática, os índices de repetência tenderiam a cair para zero e estatisticamente o problema estaria resolvido. No entanto, nem por isso a situação das escolas se alteraria, permanecendo o mesmo quadro de deficiências e precariedades que se associam, hoje, aos altos índices de repetência. O que precisa ser feito é equipar adequadamente as escolas e instituir uma carreira digna para o corpo docente como fizeram os países que, a partir do final do século passado, implantaram os seus sistemas nacionais de ensino, universalizando o ensino fundamental e, em conseqüência, erradicando o analfabetismo. Em condições adequadas o normal é que as crianças aprendam sendo, portanto, promovidas. Assim, resolve-se o problema da repetência porque as crianças, de fato, aprendem e não porque se decretou a promoção automática.
 


fonte: http://www.fae.unicamp.br/dermeval/index2.html

2 comentários:

  1. É sempre pertinente (re)lembrar o conceito e significado da cultura em nossa sociedade. Aparentemente até os "educadores" esqueceram-se de como a cultura pode alicerçar os valores dos povos; esqueceram-se de como repassamos geração a geração nossos valores; esqueceram-se de como a ação cotidiana compõe a realidade.Mas espero profundamente, que não esqueçamos de (re)produzir..."a cultura do saber..."!

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  2. Pois é Sandra,
    O pior é vermos o conceito de cultura jogado no lixo e sendo recriado de maneira tão superficial e incorreta...e daí surgem os termos da moda, como "cultura da repetência".

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