sábado, 2 de abril de 2011

O mito da escola privada - Final - Gustavo Fischman

Término da entrevista de Gustavo Fischman, concedida à Solange Azevedo e publicada na revista Época de 16/08/2004, edição 326.


Parte I postada em 23/03.

Parte II postada em 26/03





ÉPOCA - A violência crescente também não compromete o ensino nas áreas mais pobres?
Fischman -
Na maior parte do mundo, as escolas são o local mais seguro para as crianças e os adolescentes estarem. São muito melhores que a rua e, em muitos casos, mais que as próprias casas dos alunos. As escolas americanas aparecem na mídia como se fossem lugares muito violentos. É sempre lembrado o caso da escola em Columbine, onde 13 alunos e professores foram mortos por dois estudantes armados com rifles em 1999. Mas os números evidenciam que a violência nas escolas públicas dos EUA caiu nos últimos dez anos.

ÉPOCA - O que é uma escola moderna?
Fischman -
As escolas não são autônomas das sociedades. São tão criativas como as prioridades que as sociedades lhes atribuem. As escolas, os hospitais e as cadeias são três instituições criadas mais ou menos no mesmo período histórico, há 150 anos. Se formos comparar como evoluíram, veremos que, no passado, os médicos trabalhavam de modo mais individual. Hoje as tarefas são planejadas e executadas por grupos. Há incorporação da tecnologia e trabalho de prevenção. O mesmo aconteceu nas cadeias, com equipes multidisciplinares para lidar com os presos e cada vez mais tecnologia e trabalho de grupo. Mas as escolas do passado são muito parecidas com as de hoje. São espaços fechados, com um professor, 30 a 50 alunos e um quadro-negro. A grande revolução tecnológica de muitas delas parece ser comprar uma televisão e um computador.

ÉPOCA - O aluno que vive no campo tem de aprender o mesmo que o de uma cidade grande?
Fischman -
A função política e social de uma escola tem de ser a mesma. Não dá para pensar que alunos de áreas campesinas só têm de aprender coisas do campo. Mas, no que diz respeito à formação para o trabalho, a escola tem de se adaptar. Deve oferecer alternativas diferentes de acordo com as possibilidades de cada local, procurando muita flexibilidade e não restringindo as opções dos estudantes. Isso não tem de ser feito cedo, no ensino fundamental. Hoje é muito difícil dizer o que vai ser viável daqui a dez anos. Na prática, as pessoas vão aprender o que a sociedade naquele momento decidir que é importante. Em Buenos Aires, há um cibercafé a cada dois quarteirões. O custo é baixo, equivalente a R$ 1 por hora. Isso dá sinais de que a computação e as tecnologias da informação são importantes.

ÉPOCA - Como a crise econômica afetou a educação na Argentina, tida como uma das melhores do continente?
Fischman -
Hoje, a escola pública argentina tem função claramente assistencialista. Pode-se dizer que 50% da população é pobre. Isso quer dizer que muitas crianças têm dificuldade de acesso até à comida e à saúde. Para que elas permaneçam na escola, é preciso suprir essas necessidades. O resultado é que o tempo efetivo dedicado ao ensino é menor.

''Nos anos 80 e 90, o Banco Mundial achou que investir no ensino fundamental era mais produtivo do que no universitário. Mudou a educação na América Latina a partir de um modelo que não era sólido''


ÉPOCA - Quais países oferecem uma educação exemplar hoje?
Fischman -
Países como Finlândia e Noruega, entre os países ricos. Mais perto da realidade econômica da América Latina, muitos países do Sudeste Asiático, como Taiwan, Coréia do Sul e Tailândia, investiram em educação nos últimos anos, especialmente no ensino universitário. Hoje, a situação educativa e social de alguns deles é muito melhor. Mas a educação não pode ser pensada como um investimento de curto prazo. É um esforço de décadas.

ÉPOCA - Há países pobres ou em desenvolvimento que podem ser referência na área?
Fischman -
Eu citaria Cuba, Uruguai e Costa Rica, que apostaram na educação pública e conseguem oferecer ensino de qualidade. Talvez a diferença fundamental seja que nesses três países o investimento educacional é de longo prazo. Ali se pensa o acesso e a permanência na escola como uma política de Estado. Claro que, nos casos de Costa Rica e Uruguai, são Estados identificados com ideários democráticos e, no caso de Cuba, com os princípios do socialismo.

ÉPOCA - Um país com poucos recursos deve priorizar o investimento no ensino fundamental e médio ou no universitário?
Fischman -
Em qualquer país o investimento não pode ser direcionado para um único lado. O Estado tem de atender à demanda desde a educação infantil até a faculdade. Se alguns países pararem de comprar armas, por exemplo, poderá sobrar dinheiro para a educação. Quando algum dos níveis já funciona bem, os outros podem ser priorizados. Porto Alegre, que é referência no ensino público fundamental, poderia canalizar seus recursos para o ensino médio e o universitário.

ÉPOCA - Muitos países pobres e em desenvolvimento priorizam o ensino fundamental. É o mais recomendado?
Fischman -
Nos anos 80 e 90, o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional forçaram políticas de ajustes econômicos que tiveram grande efeito sobre a educação na América Latina. Os planos implicavam, em muitos casos, condicionar créditos a mudanças no sistema educativo. O Banco Mundial achava que investir no ensino fundamental era muito mais produtivo do que no universitário. Hoje o banco reconhece que essa política se baseava em pesquisas insuficientes. Mudou-se toda uma política de educação na América Latina a partir de um modelo que não era sólido.

ÉPOCA - Incluindo a participação privada, o Brasil investe cerca de 4,3% do PIB em educação. Não é bastante?
Fischman -
Os países ricos investem cerca de 5% ou 5,5% do PIB. Mas não é conveniente fazer comparações diretas sem levar em conta as situações das distintas regiões dentro de um país. Um dos grandes desafios é ver para onde vão esses recursos. No Brasil, por exemplo, a Região Sudeste é mais rica e ao mesmo tempo investe mais do que o Norte e o Nordeste. A educação tem de ser pensada como ferramenta com alto potencial de redistribuição. Por isso, o ensino público tem de ser prioridade de qualquer governo.


Nenhum comentário:

Postar um comentário